segunda-feira, 21 de junho de 2010

A Maior Flor do Mundo


"E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos?
Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?"


segunda-feira, 31 de maio de 2010

Anísio via cinza

Algo de estranho havia acontecido naquela noite com Anísio. Talvez um sonho que a memória não conseguiu reter após o despertar. Talvez algum desconforto físico durante as horas de sono. O fato é que aquela manhã não foi "comum". Logo ele que nunca foi de perder tempo com ruminações, sempre centrado em seus afazeres que, evidentimente, foram sempre numerosos como é de se supor para alguém com sua posição social.

"o mundo exterior se apresentava à Anísio desprovido de cores, com seres e coisas oscilando entre o branco e o escuro"

Desde cedo Anísio aprendeu que só com muito esforço e determinação ele poderia conquistar uma vida dígina e respeitada. O nascimento lhe conferiu uma deficiência pouco conhecida, que fez com que sua visão só captasse tonalidades de cinza. Assim, o mundo exterior se apresentava à Anísio desprovido de cores, com seres e coisas oscilando entre o branco e o escuro. Longe de se colocar como vítima do destino, tal fato nunca representou, ao menos conscientemente, uma limitação para Anísio.

Seguiram-se os anos de uma infância alegre e de muito viço. Com as traquinagens comuns de qualquer criança, porém sempre pautada nos pais como exemplos de conduta e respeito aos ditames da família e da sociedade, se esforçando para cumprir seu papel, estudar, trabalhar e vencer na vida.

O tempo passou e Anísio percorreu o caminho que desde cedo já havia delineado. Formou-se em uma profissão respeitada socialmente, facilmente conseguiu o emprego que foi reservado para alguém como ele, que percorreu os caminhos indicados para a fácil adaptação ao mundo. Formou uma família, tornou-se um bom esposo, ofereceu o melhor para os filhos e serviu de modelo para a comunidade, contribuindo para um perfeito funcionamento da organização e harmonia da sociedade.

Tudo era certo e claro para Anísio. Tudo perfeitamente ordenado e pensado, sem espaços para incompletudes e incertezas. Linear, definido, delimitado. Talvez por isto ele tenha sido uma referência em seu meio. Portador de uma palavra de sobriedade e austeridade à todos que o procurava.

Esta foi a síntese, em perpectiva, da existência de Anísio até aquela fatídica manhã.

Já no café da manhã, reunido com a família, Anísio sentiu certo incômodo. Uma angústia surda, sem explicação. Olhando para os rostos sorridentes e rechonchudos dos seus familiares, para aquela cena de “família margarina” tão costumeira, algo o inquietava. À menção de seu semblante inabitual, Anísio justificou com um resfriado, coisa à toa para não despertar maiores alardes.

Despediu-se ao sair para o trabalho, esforçando-se para não quebrar o protocolo de todas as manhãs. Ligou seu carro e saiu, de pensamento distante, dirigindo mecanicamente. Num instante, a atenção de Anísio retorna para a direção do carro, ao perceber um pequeno vulto acinzentado cruzando sua frente, em velocidade. Forte barulho de freios, mãos rígidas ao volante e o coração disparado.



"A vida não se submete a regras"
Enquanto Anísio respirava fundo, se recuperando do susto que acabara de levar, o belo labrador do vizinho já farejava as plantas do gramado ao lado, alheio ao perigo que passara segundos atrás. Indignado com o cão, mais ainda com o dono do mesmo, Anísio tecia mentalmente as merecidas reprimendas para aquele vizinho "irresponsável e omisso", incapaz de impor regras a um animal doméstico, quando um pensamento assalta sua mente, silenciando todo o resto: "A vida não se submete a regras".

Foi como se um argumento fechasse a possibilidade de contestação por sua lógica inesperada e estapafúrdia. A estas horas, Anísio já não sabia se sua confusão íntima advinha de algum sonho inquietante, de uma enfernidade física ou da emoção do quase acidente. Seguiu seu caminho para o trabalho, novamente de pensamento distante e coração inquieto.

Um ano se passou desde aquela manhã, que já havia se tornado um marco na existência de Anísio. Apesar de externamente nada de substancial ter se alterado em relação a sua vida, a seus familiares, a seu trabalho e etc, aquela clareza de pensamento quanto ao mundo e a si mesmo não mais existia. Esta mudança foi logo percebida por todos e atribuída a diferentes causas.



"Anísio percebe extasiado, pela primeira vez na vida, as tonalidades castanho-amadeiradas do pêlo volumoso do animal"
Cada um tinha sua hipótese embasada nos mais diversos motivos. Uns diziam ser uma crise psicológica, hipótese esta aventada pelo fato de Anísio ter buscado respostas a suas angústias na psicanálise. Outros diziam ser uma crise de meia idade, pelo fato de agora estar sempre envolto em leitura filosóficas. Outros ainda arriscavam hipóteses menos óbvias e de embasamento duvidoso, da abdução ao ingresso em alguma seita. Seja como for, o próprio Anísio não seria capaz de precisar uma causa, se única ou múltipla. Por esta época, Anísio já se encontrava de coração mais confortado. Nada das antigas certezas, porém já acostumado ao convívio com as angústias íntimas.

Tempos depois uma nova manhã inicia para Anísio e o sol vem encontrá-lo em pé ao lado da janela de seu quarto, olhando a rua. O labrador do vizinho está brincando no gramado e Anísio percebe extasiado, pela primeira vez na vida, as tonalidades castanho-amadeiradas do pêlo volumoso do animal. Um mundo mais amplo de matizes coloridas se abria para Anísio.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A árdua tarefa de se iniciar um livro



"A empreitada [escrever um livro] é fascinante. Ainda quando não tenha significação maior na história da literatura dos povos do Ocidente, nem nos do Oriente, costuma ser da maior importância para quem fica sentado diante de um computador, horas a fio, feito bobo, persuadido de que pode impedir que a vaca vá para o terreno sáfaro e agreste, que só dá urzes, também conhecido como urzal ou brejo.

Alguns escribas, mais desinibidos, pensam ter condições de salvar a pátria, e não faltam aqueles que, estimulados pela caspa abundante e pelos companheiros de mesa de bar, estão rigorosamente convencidos de que podem consertar a humanidade.

Pensando compor seu livrinho, o autor já se aborrece de véspera, na papelaria do bairro, quando não encontra um pacote de papel A-4 Laserwork, porque acredita piamente que sua impressora a jato de tinta requer aquele tipo de papel, para apresentar serviço à alguma coisa escrita por aquele jumento.

Até os editores, às vezes, afetam demonstrar certo interesse pelo novo livrinho, interesse que deixa de existir quando o autor aparece na empresa levando a pasta com os originais, ou manda o disquete pelo correio. E o certo é que, algumas vezes, encaminhamos originais para altura da obra que pretende compor. E um livro supimpa requer impressão da maior supimpitude, pensa o autor, enquanto promete recorrer ao Aurélio, para ver se tem supimpa e supimpitude.

Com a escolha da fonte em que vai compor sua obra, tarefa dificultada pelos CD-ROMs que têm até 10.000 (dez mil!) fontes diferentes, nosso amigo vai à luta depois de discutir com a mulher, partidária da American Bold BT, com os filhos, que se dividiram entre as fontes English 157, Dom Casual BT e Impress BT, e com a sogra, partidária da Modern, ela que é uma velha insuportável.

Fixado, finalmente, na Times New Roman, normal, 12, e na certeza de que, qualquer que seja a fonte escolhida, vai ser mudada pelo artista que opera o page-maker da editora, cujos conceitos estéticos são naturalmente diversos dos de um produtor de leite," nosso amigo está em condições de iniciar seu trabalho pela etapa mais complicada, qual seja, o primeiro capítulo.

Eduardo Almeida Reis, em As vacas leiteiras e os animais que as possuem.